04 de dezembro de 2024

Caravana bolsonarista de SP para ato em Brasília tem saudosismo da ditadura e críticas ao STF

Grande parte da caravana era composta por "tias do zap", mulheres em geral com mais de 50 anos, que assumem com orgulho essa denominação.


Por Folhapress Publicado 07/09/2021
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Caravana bolsonarista de SP para ato em Brasília tem saudosismo da ditadura e críticas ao STF
Grande parte da caravana era composta por “tias do zap”, mulheres em geral com mais de 50 anos, que assumem com orgulho essa denominação. Foto: Após furarem o bloqueio da Polícia e invadirem a esplanada dos ministérios com carros e caminhões, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro ficam em frente ao último bloqueio da polícia antes da praça dos três poderes. (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress, PODER)

A agitação na caravana de Lucinha Ramiro, 60, começou bem antes da partida do ônibus de São Paulo a Brasília, para o ato de 7 de Setembro em defesa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).


“Bom dia. Lembrando que é preciso máscara, mas para as paradas, viu? No ônibus, podem ficar à vontade”, foi uma das recomendações que ela enviou na semana passada ao grupo. “Quem faz uso de ivermectina eu aconselho tomar, apenas por precaução”, completou.


A Folha de S.Paulo acompanhou a viagem dos bolsonaristas, que saiu da região do terminal Tietê, em São Paulo, no domingo (5) por volta das 15h15 e chegou à capital federal 20 horas depois, pouco antes do meio-dia desta segunda-feira (6).


Foram 90 militantes em dois veículos que seguiram em comboio. A trupe era um pequeno resumo do bolsonarismo atual: havia evangélicos, ex-esquerdistas, empresários vociferando contra a corrupção, defensores do tratamento precoce contra a Covid-19 e saudosistas da ditadura.


Lucinha, de Guarulhos (SP), é a alma do grupo. “O Bolsonaro me chama de Lucinha Pitbull”, conta, orgulhosa.
O apelido se justifica pelo estilo direto ao ponto. Numa parada da viagem em Pirassununga (SP), chamou um funcionário para exigir que mudasse o canal de dois aparelhos de TV que exibiam a Rede Globo. “A Globolixo não nos representa”, justificou ao funcionário, que disse não poder atender o pedido.


Ela vem promovendo caravanas desde dezembro de 2018, ao ritmo de ao menos uma por mês.


“Sempre que tem algum evento ou votação importante a gente vai”, diz ela, também uma das coordenadoras do Movimento Pró-Armas. “Não é sobre armas, é sobre liberdade”, dizia a estampa da camisa que usou na viagem.
Como todos na caravana, ela reclama do que vê como um ataque cada vez mais duro contra a liberdade de expressão, capitaneado pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, de longe a figura mais “homenageada” pelo grupo.


“Fiquei 15 dias bloqueada pelo TikTok porque postei uma foto do Leo Índio [sobrinho de Bolsonaro] com uma arma. E olha que ele é CAC [atirador registrado]”, disse, indignada.


Sentado no fundo do ônibus, Jair Barroso, 70, passou grande parte da vida como esquerdista, militando em sindicatos, movimento sem-terra e até no PC do B.


“Chega uma hora que a gente para de ser burro”, disse. O hoje direitista tem uma instituição em que cuida de 108 jovens carentes em Guarulhos. Viajou com um deles, David, 17, em quem identificou o dom de cantar. “Eu sou bolsonarista, ele agora virou um também.”


Com um alto-falante portátil e um violão, Jair e David providenciaram grande parte da animação musical da viagem, que não tardou a começar.


Com uma hora de estrada, o corredor já havia se tornado uma pista de dança improvisada, num setlist que misturou cancioneiro brega, músicas sertanejas e hinos da pátria.


Um dos mais populares, o da Independência, gerava coro inflamado no trecho que diz “ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil”.


Outros hits, entoados também nas paradas, foram “Menino da Porteira”, de Sérgio Reis, “Funk do Bolsonaro”, do MC Reaça, e “Eu Te Amo Meu Brasil”, canção de exaltação à ditadura militar do grupo Os Incríveis.


Grande parte da caravana era composta por “tias do zap”, mulheres em geral com mais de 50 anos, que assumem com orgulho essa denominação.


A diarista Salomé Matos, 63, diz ter virado madrugadas na eleição de 2018 administrando redes sociais em defesa de Bolsonaro. Hoje cuida de nove grupos de WhatsApp, além de um conta no Facebook com 14 mil membros.


Intervencionista, diz que o Supremo “ultrapassou a régua da Constituição”, especialmente o “cabeça de ovo”, referência a Moraes. Afirma que Bolsonaro tem que agir. “O que o presidente fizer o povo tem que aceitar”, afirma ela, com unhas pintadas de verde.


Outra da bancada das tias, Dora Lopes diz que, apesar do apoio ao presidente, não tem político de estimação. “Eu tenho meu país de estimação”, explica.


O amor por Bolsonaro só rivaliza com o que tem pelo Palmeiras -uma de suas atividades é organizar eventos para torcedores do clube alviverde.


Já a repulsa por Moraes é quase igualada pela que nutre pelo governador João Doria (PSDB), que ela considera mais nocivo até do que Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Doria é mais perigoso porque sentou na cadeira para estudar”, diz.
Embora não exatamente um “tio do zap”, o engenheiro mecânico Adailton Carvalho, 47, de Piracicaba (SP), gabarita nas demonstrações de apreço pelo presidente.


Na campanha de 2018, adesivou seu Hyundai Elantra com um enorme “Bolsonaro” cobrindo toda a lataria lateral do carro, e “Mito” na parte de trás. Além de ser CAC, é também motociclista e participou da motociata com Bolsonaro em São Paulo, em junho.


“O que me admira nele é o pulso firme de Bolsonaro, de não arredar pé do que acredita, de não desistir de acabar com a corrupção”, afirma.


Repetindo um discurso comum de bolsonaristas, ele afirma que o presidente está jogando dentro da Constituição e que o problema está nos outros Poderes. “Creio que nós teremos um novo 64. Não é só o Bolsonaro, tem uma cúpula de generais por trás dele”, diz.


Ex-segurança de boate com um físico musculoso que chama a atenção, Thiago Ferreira, 35, aproveitava a viagem para fazer negócios.


Antes de embarcar, investiu R$ 2.000 em máscaras, bandanas, bonés e outros apetrechos com referências ao presidente. Seu plano era vendê-los na Esplanada dos Ministérios e faturar alto com o evento.


Nos últimos meses, sua vida tem sido viajar com seus produtos para onde Bolsonaro for. Esteve em Minas Gerais, Espírito Santo e Santa Catarina, entre outros locais.


Apesar disso, garante que seu interesse não é apenas mercantil. “Eu gosto da sinceridade dele [Bolsonaro]. Não tá nem aí pra o que a mídia diz”, afirma.


Ex-eleitor do PT, disse que se decepcionou com a corrupção sob Lula. Em tom mais baixo, fez uma confidência. “No governo Dilma, eu vim numa caravana pra Brasília paga por sindicatos. Recebi R$ 200, mais um lanche, suco e Toddynho para agitar bandeiras”.


Outro empreendedor a bordo era Osvaldo Cassiano, 74, que relatou dificuldades de outro tipo. Ex-metalúrgico, conheceu Lula nos anos 1960, mas nunca aceitou as ideias da esquerda.


Ele tem uma empresa de fabricação de selos mecânicos (peças que impedem o vazamento de fluidos em máquinas) que empregou mais de 500 pessoas no auge.


A firma agora está parada, com uma dívida de R$ 5 milhões. Fruto, segundo ele, da destruição pelo PT do setor petroleiro, de onde vinha grande parte de sua clientela. “Estou com o saco cheio de pagar ladrão”, diz ele.


O empresário diz que apoia fechar o Congresso e trocar todos os ministros do STF, mas não está otimista. “Luto pela pauta intervencionista, mas acho que os militares não vão entrar”, diz.


A viagem inclui deslocamento de ida e volta mais hospedagem num hotel na região central de Brasília. A Folha pagou R$ 410 por pessoa, embora tenha utilizado apenas a viagem de ida.


O ônibus fez diversas pausas pelo trajeto, pegando passageiros que embarcam no interior de São Paulo. Também houve longos intervalos em restaurantes de beira de estrada.


Uma das paradas foi em Araguari (MG), que virou uma balada: o ônibus chegou à 1h30 e saiu perto das 4h. Houve música, cerveja e gritos de guerra pró-Bolsonaro. Como o local estava semideserto, quase todos dispensaram a máscara.


Às 7h, após uma noite maldormida, todos já estavam de pé de novo, desta vez em uma lanchonete em Cristalina (GO), para o café da manhã. Na beira da estrada, todos agitavam bandeiras e gritavam para motoristas de caminhão que buzinassem ao passar. Os que se recusavam eram chamados de petistas ou comunistas.


Uma das mais animadas era a corretora de imóveis Vana Mariozi, de Sorocaba (SP). Ela celebrava também o fato de ter se curado da Covid-19, contraída em março.


“Passei 10 dias no hospital, sendo 4 recebendo oxigênio, mas não precisei ser intubada, graças ao tratamento precoce”, afirma ela, que toma cloroquina diariamente e ivermectina semanalmente.
Nenhum dos dois remédios tem eficácia comprovada, mas ela diz não acreditar nisso. Também não se vacinou. “Essas vacinas são todas experimentais”, diz.


Todas os imunizantes utilizados no Brasil foram autorizados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) após terem eficácia e segurança comprovadas ao serem aplicadas em milhares de voluntários durante os testes
Com ela, viajava uma amiga médica que receitou os remédios. “Essa mulher aqui salvou minha vida”, afirma Vana.


A médica trabalha num hospital estadual na zona leste de São Paulo e pediu para não ter o nome publicado. Disse que tem sofrido pressão para assinar um documento reconhecendo a ineficácia do tratamento precoce, mas se recusa.


De acordo com a médica, nenhum dos mil pacientes com Covid que ela tratou morreu, justamente por causa do tratamento precoce, que defende também para crianças. Segundo ela, crianças com Covid, depois de meia hora que tomam cloroquina, já estão brincando e com fome de novo.


No final da manhã, em um dia típico da seca brasiliense, o ônibus chegou a uma churrascaria na Vila Planalto, bairro da capital perto da Esplanada dos Ministérios.


Em meio a um almoço ao ar livre, houve tempo para mais uma rodada de discursos com críticas ao STF e aos que “não deixam o presidente governar”. Depois, os bolsonaristas rumaram ao hotel para um descanso e preparação para o grande ato do dia seguinte.


Foi a deixa para a reportagem da Folha, que não sofreu hostilidade durante o trajeto (embora tenha se apresentado abertamente como tal), desligar-se do grupo.