23 de novembro de 2024

De garçom a dono do tradicional Santo Colomba, Alencar resiste ao tempo

Tudo ali é antigo e original, do famoso bar transplantado do Jockey Clube do Rio de Janeiro à caixa registradora, passando pelos painéis de imbuia que cobrem as paredes. Até o cardápio, inspirado na clássica cozinha italiana, é o mesmo


Por Folhapress Publicado 03/10/2019
Ouvir: 00:00

Atrás de uma pesada porta de mogno com vitrais, no térreo de um flat na alameda Lorena, nos Jardins, esconde-se um dos redutos mais tradicionais da velha elite paulistana.

Tudo ali é antigo e original, do famoso bar transplantado do Jockey Clube do Rio de Janeiro à caixa registradora, passando pelos painéis de imbuia que cobrem as paredes. Até o cardápio, inspirado na clássica cozinha italiana, é o mesmo. 

O mobiliário é de 1912, o que dá ao restaurante, que comemorou 40 anos, uma atmosfera que lembra a carioca Confeitaria Colombo. Mesas, cadeiras e poltronas vieram junto com a mudança trazida do Rio pelo celebrado publicitário Geraldo Alonso, da Norton Propaganda, o fundador do Santo Colomba. 

Em 1978, Alonso queria um lugar confortável para reunir os amigos em torno de uma boa mesa para conversar, beber e tomar vinho, sem pressa. Datam dessa época as primeiras confrarias de vinho, grupos de até 20 amigos que, uma vez por semana, levam suas próprias garrafas e ficam disputando para ver qual é a melhor. 

Esse túnel do tempo é comandado, há 26 anos, por um mineiro negro, com gestos largos e fala empolgada de italiano.

De garçom a maître, chef e dono de restaurante –que ainda não acabou de pagar–, José Alencar de Souza, 66 anos, seis filhos, é um sujeito apaixonado por tudo que faz, das compras de ingredientes ao preparo da comida.

Alencar não para um minuto, sempre de dólmã branco impecável. Pergunta o que o freguês tem vontade de comer e garante que está especial determinado prato, declinando os ingredientes, temperos e o tempo de cozimento.

Freguês antigo, eu nunca tinha consultado o cardápio de 70 pratos, dos antepastos à sobremesa, com destaque para massas, feitas lá mesmo, e carnes, como o stracotto, um lagarto marinado e cozido por 12 horas, servido com polenta mole italiana.

“Hoje o amigo vai comer aquela dobradinha, que está especial”, decide ele, já contando onde comprou o bucho, como o preparou e tudo o que vai na cumbuca de barro. O prato nem está no cardápio, mas ele sabe o gosto de cada freguês.
Era uma quinta-feira, dia de muito movimento, e o convidei para almoçar para poder entrevistá-lo. “E eu sou louco de comer aqui?”, brincou, dando uma gargalhada. De fato, nunca o havia visto comendo no seu restaurante. 

Mesmo assim, depois de ver que todos já estavam servidos às mesas, trouxe com ele da cozinha um prato de spaghetti nero italiano, feito com tinta de lula, acompanhado de pequenos camarões e salpicado de bottarga, ovas de tainha defumadas, que também não existe no cardápio. 

“Quando cheguei na Estação da Luz, no dia 7 de setembro de 1977, minha mala era um rolo e o cadeado era feito com um nó”, recorda Alencar.
Depois, foi morar numa casa abandonada no Glicério. Trabalhou como ajudante de pedreiro até arrumar emprego na fábrica Villares, e se mudar para uma pensão no Cambuci. Ali, conheceu o amigo que lhe falou de uma casa de chá na rua Bela Cintra, onde estavam precisando de um ajudante geral.

Cansado do trabalho pesado na fábrica de elevadores, Alencar aceitou na hora o emprego que mudaria sua vida. Gostou do ambiente e, sem ter curso primário, animou-se a fazer cursos no Senac, em São Paulo, e no Grande Hotel de Águas de São Pedro. Ganhou prêmio de melhor garçom entre os 58 alunos.
O diretor da escola, Antonio Nogueira, o convidou para ficar trabalhando lá, mas Alencar preferiu voltar para São Paulo e o “danado destino”, como ele diz, o levou ao Spaghetti Notte, que fazia muito sucesso na época. 

Em pouco tempo, seria promovido de garçom a maître. A dona do restaurante, Franca de Nicolis, a quem é muito grato, ensinou-lhe os segredos da boa comida italiana. 

Virou sócio de restaurantes italianos, apaixonou-se pela cozinha e, seis anos depois, tornou-se dono único do Santo Colomba, comprado com “porteira fechada”, incluindo a belíssima adega, hoje com 650 garrafas de vinho (com preços entre R$ 65 e R$ 1.275). 

Na freguesia do local estão desde o ministro Dias Toffoli, presidente do STF, a grandes empresários, políticos, juristas, banqueiros e até a família dos donos da Casa Santa Luzia, onde Alencar compra produtos importados.

Chegou a ter 42 funcionários para servir os 70 lugares do Santo Colomba; hoje, várias crises econômicas depois, conta com 26.

Ele garante que mesmo nos piores momentos nunca deixou de comprar produtos de primeira qualidade, que escolhe nos melhores fornecedores nas feiras e no Mercado Central. Se alguém duvidar, ele convida o cliente a ir à cozinha, reformada em 2015, toda em inox, para constatar com os próprios olhos a qualidade dos ingredientes. 

Um dos orgulhos de Alencar é o novo piano Fritz Dobert, comprado no ano passado. No pequeno palco reina há muitos anos Giuseppe Mastroianni, que já passou dos 80. Às sextas e sábados, à noite, e domingo, no almoço, ele faz tanto sucesso quanto a comida. É só pedir a música que ele toca. Outra tradição mantida é não cobrar rolha de quem leva seu próprio vinho. 

Na alameda Lorena, a tradição resiste, assim como o bom humor do sempre sorridente Alencar, que nunca está de cara feia nem reclamando da vida. “A vida não pode ser só trabalho. Tem que ser uma festa…”, diz o cozinheiro.

RICARDO KOTSCHO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)